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Defesa do executado não é manobra: é garantia constitucional

  • danielavlav
  • há 2 dias
  • 3 min de leitura
A execução civil tem sido, com frequência preocupante, campo fértil para a erosão silenciosa das garantias processuais. Em nome de uma pretensa efetividade jurisdicional, opera-se uma inversão perversa da lógica constitucional: presume-se a má-fé do executado e se atribui natureza desviada ao próprio exercício da defesa. Trata-se de um movimento institucional que coloca em xeque a integridade do processo como instrumento equidistante de solução de conflitos.

No processo executivo contemporâneo, há uma crescente tendência de se associar o direito de defesa do executado — especialmente quando exercido por exceção de pré-executividade ou por embargos à execução — a uma conduta oportunista e artificialmente dilatória. Essa visão, embora cada vez mais comum na prática judiciária, revela grave equívoco conceitual: confunde o legítimo contraditório com resistência ilegítima, invertendo a lógica constitucional de que todo processo pressupõe paridade de armas e possibilidade efetiva de resposta.

A defesa no processo executivo não é um favor concedido pelo sistema. É garantia estrutural da jurisdição democrática. O contraditório e a ampla defesa, assegurados no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, não admitem relativização em razão da natureza satisfativa do processo. O fato de o credor portar um título executivo — ainda que judicial — não converte automaticamente o executado em devedor contumaz, nem o autoriza a ser privado de mecanismos legítimos de resistência.

A crítica não se volta contra a busca da efetividade, mas contra a sua absolutização. A jurisprudência contemporânea tem incorrido na armadilha de tratar a defesa como entrave, como se a celeridade fosse um fim em si mesma — e não um meio subordinado à legalidade, à isonomia e à integridade processual. O processo de execução exige agilidade, sim, mas exige antes disso fidelidade aos princípios estruturantes do devido processo legal.

Não se ignora que o abuso do direito de defesa existe. Há, de fato, expedientes protelatórios, argumentos infundados, atos praticados com desvio de finalidade. Mas o problema da má-fé processual não pode justificar a supressão de direitos em bloco. A exceção não pode ditar a regra. O ônus argumentativo do Poder Judiciário, ao indeferir a escuta do executado, deve ser proporcional à gravidade da restrição imposta. E isso raramente ocorre.

Mais grave ainda é o tratamento padronizado conferido às exceções de pré-executividade. Em muitos juízos, as teses defensivas são repelidas liminarmente, sem cognição mínima de mérito, sob alegação de que configurariam “tentativa de rediscussão da dívida”. Essa resposta judicial, muitas vezes automática, é incompatível com o postulado da motivação das decisões (artigo 93, IX, da CF/88) e com o princípio da cooperação processual previsto no artigo 6º do CPC. A negativa de análise qualificada da tese de defesa transforma o exercício do contraditório em formalidade estéril.

Ademais, há aspectos práticos que tornam a situação do executado ainda mais delicada. A penhora online de ativos, a inclusão em cadastros restritivos, a imposição de multa por embargos considerados infundados e a indisponibilidade de bens são medidas gravíssimas que produzem efeitos materiais e reputacionais profundos. A banalização desses mecanismos, quando desacompanhada de uma escuta efetiva da parte executada, fragiliza a confiança no sistema judicial. Defesa é direito
A defesa do executado, quando exercida com boa-fé e técnica, não é obstrução: é instrumento de controle da legalidade e de preservação do equilíbrio processual. A execução forçada não pode se tornar um ambiente de exceção normativa. A lógica da efetividade não pode substituir o direito à resistência. Ao contrário: a resistência fundamentada é o que legitima a própria execução como expressão de um Estado de Direito.

É preciso, portanto, recalibrar o discurso judicial que desqualifica a defesa como “manobra”. Defender-se é direito, não concessão. Sustentar a prescrição, alegar impenhorabilidade, discutir a inexigibilidade do título — tudo isso está no âmago do contraditório. Ignorar tais fundamentos, ou tratá-los como irrelevantes, não é apenas erro técnico. É ruptura com o processo constitucional.

Enquanto não reconhecermos que o executado tem lugar legítimo e protegido no processo, continuaremos a naturalizar a violência processual travestida de eficiência. E isso, longe de fortalecer a jurisdição, a enfraquece — porque compromete sua autoridade moral.

A defesa do executado, portanto, não é obstáculo à justiça. É a sua medida. É ela que revela se o processo se ancora em garantias ou em conveniências. E num sistema que pretende ser democrático, o que mede a justiça não é a velocidade da sentença, mas a escuta do contraditório.

Daniela Poli Vlavianos

é advogada, sócia do Poli Advogados Associados, especialista em defesa do executado, prescrição e proteção patrimonial.

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